Quando a ignorância é uma benção

27.12.15




Texto originalmente escrito em maio de 2015.


Está cada vez mais difícil olhar para o lado e fingir que entendemos das coisas.

Sinto que, por muito tempo, as pessoas agem assim. Nós olhamos os problemas que a televisão quer nos mostrar e fingimos que entendemos deles. Basta algumas manchetes bem colocadas que surgem pelo país inúmeros especialistas em economia para falar da queda do dólar, ou então surgem milhares de investidores da bolsade valores, com teorias certeiras de porque aquela especulação gerou aquele resultado. O STF saí no jornal e subitamente temos milhares de pessoas de reputação ilibada e inegável conhecimento jurídico, prontos para substituir os ministros incompetentes. A Câmara vira notícia, e do dia para a noite o país passa a saber exatamente o que faz e como funciona a Comissão de Constituição e Justiça.

E, enquanto fingimos ser economistas, investidores, ministros e deputados, parece que esquecemos que são poucos os que sabem como funciona o mercado de câmbio internacional, que não somos capazes de julgar o valor de determinada informação especulada, que a grande maioria dos que fala não sabe a diferença entre o STF e o STJ, e que quase ninguém parou um dia para estudar a Constituição e Teoria do Estado, muito menos o processo legislativo.

Porque então falamos? Porque insistimos em agir como especialistas em o que quer que pareça ser a discussão mais importante do momento? Alguns dizem que os acontecimentos levam as pessoas a pesquisar, se informar e se posicionar sobre determinado assunto e que isso é necessário. E eu não discordo. As informações chegam, nós processamos ela, e, pelo menos os mais conscientes, buscamos mais informações para poder formar um juízo.

O que há de errado com isso? Aparentemente nada, não é? Vamos ver.

Você acorda de manhã e lê um jornal que te conta sobre o julgamento de um criminoso. A matéria te explica o crime que ele cometeu, te conta quando e onde o crime ocorreu. Você vai procurar a revista que você conhece e lá vê o artigo explicando a mecânica do julgamento, o que a lei diz em casos como aquele e até vê a entrevista do advogado de acusação, explicando que acha um absurdo o juiz aplicar uma pena tão branda por um delito tão grave. No dia seguinte, há uma entrevista com a família da vítima na TV, todos tão abalados que mal conseguem falar. Isso sem contar o vídeo que viralizou no youtube, de uma testemunha que filmou escondido com o celular em vez de ajudar, e jogou o conteúdo na rede.

Aí você culpa a inércia do estado, a corrupção do juiz e a falta de competência da polícia. Reza por mais justiceiros e espera que um dia o Estado possa retribuir ao criminoso o dano que ele causou à sociedade. Olho por olho, dente por dente.

Do outro lado da cidade, na descida do morro, outra pessoa compra um outro jornal, e vê a história do homem que cometeu o crime. O jornal deu destaque a tragédia que houve com a sua família, violentada no ano anterior; ao prejuízo que ele sofreu com a desapropriação desua casa, apenas algumas ruas de onde o leitor mora. Ela vê o depoimento do ex-patrão do atual criminoso, que teve de demiti-lo para cortar custos, por causada crise. Vê a mãe idosa do criminoso, chorando junto aos netos que ela vinha ajudandoa criar. Agora nem pais eles tem, e ela tem medo do que vai acontecer com eles no futuro. Teme que eles sigam o caminho das drogas e do crime.

Aí o cara pensa que tem alguma coisa errada, e que é tudo uma conspiração contra opobre. Que isso só está passando na TV porque foi na área rica da cidade, e que ele vê coisas muito piores na esquina de casa toda semana. Quando ele liga o rádio de bolso, escuta o radialista fazendo seu usual discurso contra o governo e contra a polícia militar. Vê o rico reclamar que agora tem medo de andar na rua, e sente vontade de contar que ele tem medo todo dia, desde que tinha 10anos de idade.

E aí? Quem está certo aqui? Depende? Do que? De onde a pessoa nasceu?

Eu não acho que dependa de nada. Para mim, sabe quem está certo? Ninguém. Está tudo errado, como de costume.

Você não é especialista em direito penal, e mesmo se for, provavelmente não pegou os autos do caso para dar uma olhada. Não ouviu o depoimento das testemunhas, do réu e dos policias que o apreenderam. Você só leu a matéria que o jornalista escreveu correndo, e olha que ele não estava lá e também não é nenhum especialista em coisa nenhuma.

Aquele morador do morro não é psicólogo para saber o estado mental do criminoso, nem o que pode ter contribuído para a situação em que ele estava quando cometeu o crime, muito menos como melhor ajuda-lo a não repetir o episódio. Não sabe se foi a pobreza que o levou a cometer o crime, ou se foi um outro problema qualquer que não saibamos explicar.

Com a rara exceção dos membros do judiciário, nenhum dos dois se preparou para ser juiz de nada nem de ninguém. Nenhum dos dois tem condição nenhuma de formar um juízo, mas, ainda assim, o faz.

Ou pensa que faz. Mal percebe que foi o seu jornal, a sua emissora de TV e o seu radialista que formaram ele para você. Foram as páginas que você segue na rede social, e os seus vizinhos. Nem percebeu que, sem querer querendo, você foi jogado totalmente contra a pessoa que mora do outro lado da cidade, no morro. Tudo porque você leu o que achou que queria ler, e a outra pessoa também.

Aí surgem as correntes da sociedade que pedem pela redução da maioridade penal, por maior rigor da justiça e da policia, por mais presos e mais presídios. Alguns falam em presídios privados, mirando o sistema americano como se ele fosse exemplar. Alguns falam em pena de morte, em prisão perpétua, em direito penal vingativo e até mesmo em justiça privada. Alguns poucos chegam a virar motivo de piada (agente ri para não chorar), pedindo a volta do regime militar. Todos querendo uma resposta imediata a esse problema gravíssimo que nos vem assolando há muito tempo. “Direitos humanos para humanos direitos”, eles dizem. “Os cidadãos de bem não aguentam mais”.

Do outro lado, vemos gente falando em abolicionismo penal. Falando que o problema é estrutural e vem da base, que não se pode punir o menor infrator e que devemos instaurar melhores políticas públicas para a ressocialização dos criminosos, principalmente as crianças. Que a polícia não pode ser militar, e que vamos resolver tudo construindo novas escolas. Afinal, a polícia vai deixar de ser corrupta se ganhar mais um salário mínimo por mês. O professor vai ser mais bem preparado, se ganhar um pouco mais. Tudo o que precisamos fazer é liberar o uso das drogas para cortar o financiamento do tráfico. E então não existirão mais criminosos, todos serão educados e terão bom senso.

Tudo isso daqui há cerca de 100 anos, e que continuemos sofrendo até lá.

E nós discutimos, brigamos, andamos para um lado e para o outro, tomando mais medidas protetivas, depois voltando atrás e tomando medidas duras e severas, limitadoras de liberdade. Aplaudimos o policial que bate nos bandidos e bota eles no saco, e um ano depois aplaudimos o mesmo policial lutando pelos direitos do povo, contra os esquemas de corrupção, do lado do deputado dos direitos humanos. E, ainda assim, tem ciclista morrendo na lagoa com facada de menor infrator, tem 20 assaltos por dia no centro dacidade, tem gente sendo pega pela polícia dentro de casa e desaparecendo para sempre. Tem criança de dez anos tomando tiro na favela.

Todo mundo jura que tem a solução, aponta o dedo para todas as falhas que conseguem ver e culpam o governo, a polícia, os ricos, os pobres, as “sementes do mau”, Deus e o Inferno. Mas nenhuma solução ajuda a resolver o problema, e ele vai se arrastando, crescendo e aumentando, chamando cada vez mais atenção e tirando cada vez mais vidas. Entra governo e sai governo, mas os problemas são mais ou menos os mesmos. 

E aí?

Está ficando cada vez mais difícil olhar para o lado e fingir que se sabe exatamenteo que está errado, e qual é a melhor solução para o problema. Não dá mais para não ver que toda essa briga e essa discussão não serve para nada. Que apontar o dedo pro morro e pros direitos humanos não resolve o problema, só traz ele mais para perto de nós. Que andar com a faca para roubar o rico e que fazer justiça com as próprias mãos são apenas caminhos diferentes para a mesma cela de cadeia. Cadeias e instituições de ensino que devolvem um cidadão mais violento do que receberam.

Não dá mais para fingir que se entende o que está acontecendo. Ninguém sabe o que está errado. Nem o policial, nem o governador, nem o empresário rico, nem o morador do morro. Está tudo errado e ninguém sabe o que fazer para concertar. 

E talvez, apenas talvez, reconhecer isso seja o primeiro passo para resolver oproblema. Pensar dez vezes antes de menosprezar o menino jogando bolinha no sinal, e dez vezes antes cuspir na hipocrisia do rico de carro blindado. Ter consigo o mesmo cuidado ao emitir um julgamento que se espera de um policial antes de apertar o gatilho.

Uma vez eu li que o pior inimigo do conhecimento não é a ignorância, mas a ilusão do conhecimento. Uma vez reconhecida, a ignorância pode ser combatida, mas enquanto se mantém a ilusão de que sabemos de alguma coisa, nada podemos fazer para aprender o que não sabemos.

Na era da informação, onde tudo parece estar ao alcance do seu celular, ser ignorante pode ser considerado um crime grave. Tão grave quanto todos os outros que vemos nos jornais. Mas por que precisamos ter vergonha de dizer que não sabemos o que fazer? Por que temos essa necessidade de parecer inteligentes? O que tem de tão errado em admitir a nossa ignorância? Como bem disse um amigo, a justiça não é um ponto fixo e claro, fácil de se localizar ou atingir, nem deve ser.

A partir do momento em que todos reconhecerem a própria ignorância, pode ser que consigamos começar a construir juntos uma solução para o problema. Ao perceber que não sabemos mais o que é justiça, podemos repensá-la do início ao fim, reconstruí-la. Pelo menos assim reconheceríamos que somos todos iguais, nem que seja na medida de nossa própria ignorância. Talvez, quem sabe, apenas isso já servisse para solucionar quase tudo.

Mas quem sou eu para dizer isso, certo? Não posso garantir nada. Sou tão ignorante quanto o resto de vocês. A única diferença, possivelmente, é que eu não tenho mais medo de dizer: eu não sei.

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